OBS: recomenda-se a leitura do conto O
Espelho, de Machado de Assis.
Gosto
do muito do trecho da Escritura que diz que junto ao nosso tesouro está o nosso
coração. Mas embora a essência seja parecida, o caso aqui não é bíblico, e sim
Machadiano. E fala além do coração. Revela as almas que possuímos. E se você,
leitor, espantou-se pela quantidade de almas que há em cada individuo
transcrevo a própria resposta do casmurro: cada criatura humana trás duas almas
consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para
dentro...
A
segunda alma, nossa de cada dia, não é narcisista, porque Narciso considerou
somente a si próprio a única pessoa bela merecedora de seu próprio amor e por
isso, morreu. Não de amar mais do que pôde. Mas de não poder amar-se como a
paixão que sentiu por si próprio pedia. Esta nossa segunda alma só vive pelo
reconhecimento do outro, obséquios de terceiros, a velha necessidade de estar
sempre recebendo elogios (por mais falsos que sejam), de ser visto,
reconhecido, bajulado... Mas que segunda alma é esta? É a alma onde depositamos
quem de fato somos, ou queremos ser, ou ainda, que queremos que os outros nos
façam ser. É a velha farda que vestimos. Farda simbolizada na representação do
alferes machadiano. Que não sente a necessidade da farda. Mas os obséquios que
a ele foram dados em virtude da vestimenta. E quantos alferes que a farda
esgotou o prazo de validade, mas que a alma, a qualquer custo, quer continuar a
ser “alferes”. Todo homem sente necessidade de ser alferes?
Agora
me lembrei de um pretérito recente, em que a conjugação do verbo se fez
perfeito. Perfeito para o meu próprio bem. Fui alferes religioso. Seminarista
para ser mais preciso. E assim como o machadiano vivi um período de obséquios:
era irmão Rômulo para cá, irmão Rômulo para lá, iguarias da época, que só aos
padres eram oferecidas, a mim eram dadas em fartura: uma galinha caipira ao
nosso querido irmão Rômulo... Mas não tardou para que eu perdesse o posto, não só
do púlpito como também dos corações de alguns. Deixe a farda, ou melhor, a
túnica. O contrário também poderia ser verdadeiro. Verdade mesmo é que deixei
de ser alferes para muitos, pois para mim, nunca fui. Não que eu não tenha duas
almas. Não que eu não sinta a necessidade de ser alferes, e sim, porque ainda
não descobri onde guardo a minha segunda alma.
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