Há dias que a moça dava
sinais de estranheza: pouca conversa, olhar semimorto, rosto pálido e corpo
cada vez mais esquio. Nem de longe parecia àquela linda tapuia por quem os
corações dos jovens caboclos ardiam em brasa e as paixões eram inevitáveis. Os
cochichos na vila davam conta de que ela não era mais moça e, por isso, sofria
as consequências. Outros se arriscavam em dizer que aquilo era obra de feitiço.
Mas o certo mesmo é que ela não confessava nem sob pena de morte os motivos do
comportamento estranho. Mesmo assim, talvez a primeira opção fosse a mais
aceitável, já que a moça mantinha um namoro com um belo mancebo da outra margem
do Amazonas. Um jovem de beleza rara e vida misteriosa. Ninguém jamais proseara
com ele nas festas no barracão. A não ser a jovem tapuia, que com certeza
sedia-lhe os ouvidos para declarações românticas como sempre acontece com os jovens
enamorados no inicio da paixão. E outro mistério: o jovem garboso só aparecia
nas noites em que a lua se escondia.
Naquele final de tarde,
quando a boca da noite escurecia ainda mais as águas do Amazonas, a indiazinha
piorou: o corpo começou a arder em febre, os olhos avermelharam-se como fogo, o
suor-frio umedecia o lençol feito de cortina, a cama rangia assustadoramente.
Só a fala não dava sinais de piora ou melhora: permanecia muda. Com ela no quarto, os familiares e alguns
comunitários benziam-se com o sinal da cruz ajoelhados de frente dos santos
sobre a penteadeira. Nem as preces fervorosas acalmaram o espírito da jovem. O
medo tomou conta de todos. Afinal de contas, que mal era esse que possuía o
corpo da pequena cunhatã? E eis então
que resolveram chamar inicialmente o padre. Porém, uma velha tapuia advertiu
que aquilo não era assunto de homem de igreja, e sim de quem sabia desfazer
quebranto. Chamaram então a benzedeira.
A benzedeira não tardou
a chegar. Era uma senhora tipicamente cabocla: usava vestidos longos ornados
com muitas sementes, no pescoço levava sempre um colar de olho de boi (semente
da nossa região) para espantar possíveis quebrantos. No calcanhar prendia um dente
de jacaré para salvá-la das picadas de cobras na mata. O semblante era
assustador: olhos escurecidos, dentes amarelados. Consequência do tabaco que
mascava como se fosse chiclete. Os cabelos definiam-se num amontoado de fios. Se por um lado faltava-lhe beleza, por outro,
sobrava-lhe o dom de decifrar os mistérios que envolvem a alma humana. Assim que
entrou na casa - uma tapera de paredes de taipa, teto de palha e assoalho de
paxiúba - bateu o barro das sandálias no batente da porta feito de tampinhas de
refrigerante. Entrou direto no quarto. Já conhecia bem a casa. Puxou de uma
sacola velha que trazia um livrinho de capa amarelada e folhas gastas.
Aproximou-se bem da moça. Com as mãos enrugadas sentiu cada parte daquele corpo
esquio. Demorou mais na região da barriga. Com grande experiência, a benzedeira
nem precisou fazer reza. Guardou o velho livro. Pediu que só a mãe da jovem
permanecesse ali. O caso era de família! Sem delongas perguntou a mãe da jovem
desde quando aqueles sintomas começaram a se manifestar. A mãe gaguejou na
resposta. Mas ainda conseguiu dizer que achava que tudo começara dias antes da
filha iniciar namoro. Namorar! Exclamou a velha benzedeira. E é namoro de
futricamento? Perguntou.
Por aquelas bandas do
amazonas, antigamente, as mulheres casavam moças. A indagação ofendeu a mãe que
crente na honra da filha respondeu negativamente. Só depois que a benzedeira
afirmou se tratar de caso de homem a mãe forçou a filha a revelar o nome do
caboclo. A jovem tapuia cuja fala não havia perdido e que, apenas em casos como
esse, fingi-se de muda, nem o nome do garboso mancebo soube dizer. Apenas uma
descrição de leve conseguiu lembrar-se: “ele usava na maioria das vezes um
terno de linho, chapéu de abas, um vistoso relógio”. E mais: confessou que todas as vezes que
namoravam sentia-se seduzida por um forte cheiro de patichuli, que se (misturava)
confundia a um forte piché. E nem sabe Deus como, adormecia e acordava sempre a
margem do rio pela metade da madrugada. E quando dava por si corria em
disparada para casa.
A benzedeira ouvindo
todo o relato da jovem não titubeou no diagnóstico. E secamente afirmou se
tratar de caso de homem. Mas que tipo de homem...? Pensou solitariamente.
A mãe ao ouvir as
palavras da velha injuriou-se de tanto ódio. Mas o que fazer? O mal já estava
feito. O que a filha tinha de mais importante perdera. O jeito em tão era tocar
a vida. E esperar... Esperar. Talvez pensasse a mãe. Mistério então resolvido? Se
fosse na capital pedia-se DNA na justiça e logo se saberia quem era o pai da
criança. Só que por aquelas terras a coisa é bem diferente. Primeiro, espera-se
a criança nascer para daí saber se o caso foi só de desonra, de feitiço ou de
encantamento. E que Deus a livre deste último.
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