A única
lembrança materna que vagamente lhe vinha à mente era do momento em que
sua “mãe-madrasta” dividia o pouco carinho que tinha com seus clientes
maltrapilhos. Logo órfã de mãe, óbito ocasionado por grave doença do
exercício da profissão, ficou a mercê do altruísmo católico dos
orfanatos onde, pelo amanhecer, ouvia a voz trêmula da sexagenária
Freira proferir do púlpito um sermão que julgava todas as ações más do
homem provenientes da ação do demônio. Mas diferente da sorte da mãe, o
destino lhe foi favorável. Não sentiu empatia pelo trabalho generoso das
Freiras para com os pequeninos. De lá aproveitou somente o estudo. E
esse estudo viria a tornar menos duro o seu pão de cada dia. Saiu do
convento direto para a Faculdade. Conheceu os clássicos de Homero, as
dicotomias saussurianas, as tantas gramáticas que se estuda na academia,
chegando até os estudos literários mais contemporâneos. Fundiu
perfeitamente a Linguistica com a Literatura. Assim não deu outra:
tornou-se Doutora das palavras. Eximia oradora! Mas até então, festejou
sozinha todas as conquistas. Faltava-lhe um companheiro. Alguém para
andar de mãos dadas ao entardecer. Alguém em que ela pudesse aterrissar
seu coração. Lá no passado,
passou-me despercebido o fato de que nossa personagem travava uma briga
constante com a beleza. De todas as meninas dos orfanatos por onde
passou sempre ficava no grupo das meninas mais feias: cabelo fuá, meio
raquítica, olhos esbugalhados, pele encardida. Sempre quando se penteava
diante do espelho profetizava a própria sorte no amor: “acho que
morrerei solteira, ou permanecerei para sempre aqui neste lugar como a
Irmã Raimunda que de tão feia, homem nenhum consegui namorá-la. Ou mesmo
saindo daqui, ainda sim, ficarei solteirona, pois qual o homem em sua
plena sã consciência teria coragem para casar-se comigo?” (ela era
realmente feia!) Depois de
formada a feiúra lhe atenuou um pouco. Agora titulada conseguia arrancar
leves suspiros de alguns homens, assim como ela, exclusos de certa
beleza. Mas como se diz por ai que os nossos bens materiais nos fazem
ser vistos pelos outros, o anel de doutora cintilando em seu dedo
despertou num átimo um amor repentino. Quem seria esse homem que
possivelmente estaria ruim das faculdades mentais? Ela logo soube. Era um professor
da mesma escola onde trabalhava. Era recém contratado. O amor dos dois
cresceu numa proporção que nem a matemática seria capaz de calcular. Foi
um meteoro de paixão. Ela ficou enfeitiçada por aquele homem, burro,
mas bonito. Era o par perfeito na imaginação dela: “eu com o
conhecimento; ele com a beleza”. Mas na mente dele o pensamento foi
outro: “nossa! Se não fosse doutora a minha coragem não seria tamanha.
Há! criatura horrorosa”. Ela não quis saber de estender o romance
pré-inicial. Pediu logo a mão dele em casamento. Ele aceitou
prontamente. Casaram-se... Hoje faz 15 anos
que estão casados. Soube disso visitando a escola onde trabalham,
ontem. E fiquei perplexo por uma coisa. Alias uma coisa grande. Ela
contou-me que depois do casamento as coisas mudaram e muito. Ele
mostrou-se mal educado sem os mínimos modos na mesa. Não a beijava mais
com a mesma intensidade do inicio. Sentia vergonha dela em alguns
momentos na rua. Tornou-se até preguiçoso indo trabalhar somente quando
queria. No dia seguinte
tive de retornar a escola e desta vez a conversa foi com o marido dela.
Contou-me que até certo ponto arrependeu-se de casar-se com “aquela
mulher”. Isso mesmo AQUELA MULHER! Falou-me das piadinhas dos colegas de
trabalho referentes à “beleza” de sua esposa. Falou-me que ela
tornou-se muito grudenta etc. No fim, percebi o
seguinte: eis aí um casal perfeito do ponto de vista do capitalismo:
ele apaixonou-se pelo Doutorado da esposa. E ela somente pela beleza
exterior dele. Completaram-se: a feiúra encontrou a beleza; e a burrice
encontrou a sabedoria.